quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

24 portas adentro - XII porta

As portas se abriram. Amigos, amigos queridos. Entraram juntos no bar, que era só fumaça pra todo canto. Enquanto caminhava, ela lembrava que só sabia narrar em inglês. Em português, era toda poesia, poesia nua, dolorida, umas coisas florzinhas que rabiscava em guardanapos de boteco e depois esquecia em gavetas. “Queridos, queridos”, pensava. Estavam ali todos os seus amados e amadas, ternos, por estarem justamente nesse dia, seu aniversário.

Completava trinta anos cristãos sobre a Terra. Enquanto caminhava, começava a sentir que a música ia adentrando seu corpo, mesmo sendo daquelas melodias não-melodias, das boates em geral, que batem, batem, batem, até que o corpo se entrega, abraça a batida e vira a batida, bate junto, sincronizado com a não-melodia.

Todos sorriam, todos bebiam de umas taças de formatos estranhos, apanhadas de um ou outro garçom que passava: um zigue-zague de haste, parafusos de hastes de taças, líquidos de todas as cores, azul-anis, dourado-tequila, vermelho-tomate e vodka, rum e tantas outras derramadas nas bocas sorridentes, levando para longe o brilho sóbrio dos lábios, olhos de ressaca, olhos de alegria de bebedeira, olhos que esquecem seus superegos e se atiram para os lados, e dançam, junto dos corpos, mas, de todos os corpos.

E havia um êxtase em se desfrutar desse instante, um êxtase em compartilhar essa alegria: joy. “Um sea of joy, como a música”, pensou. Dançando abraçados olhos semi-fechados sorrisos abertos, e a batida, ao redor, de tudo, que girava, enquanto giravam, presos ao chão por um fio, fino, de realidade.

Como girava, também ela, no entreabrir daquele momento, percebeu uma rampa ao final de tudo. E era o final de tudo, um homem de cabelos longos e dois olhos negros de que não se esquece, nem em sonho, nem de verdade, olhos que não se esquece: sua mão esquerda estendida, convidando-a, que viesse, subisse a rampa e lhe desse a mão. Em cada um de seus lados, uma mulher, duas, com cabelos de fogo, curtos, como labareda, sacudiam, sensualíssimas, duas serpentes de cabeça em chamas, fitando-a, chamando-a sem palavras, sem gestos, mas, chamando-a, que subisse a rampa, para aquele outro patamar (ela quase ouvia suas vozes).

Parou e fitou. Seus amados sentiam, sabiam: cercaram-na de repente, como que pedissem, todos, que não andasse até lá. Os sorrisos estavam mais sérios, talvez cristalizados, apreensivos, como quem sorria e perdeu a deixa, desapontado da hora errada de sorrir, pensavam ser uma coisa e eram outra, que ela esquecia, hipnotizada pelas três figuras do alto daquela rampa. Três estrelas a que não poderia resistir.

Caminhou cinco passos. E não pensava frases, mas imagens e delícias e sensações, daquelas que não se confessa, ouvindo, ao fundo, “não”, “espere”, “aonde vai?”, “por que?”... mas, tão baixinho, que já não fazia sentido, nada fazia sentido, seus queridos, “queridos”, lembrou, tão longe já, pequenos, olhando de perto os olhos de que não se esquece, oferecendo sua mão esquerda, na direita uma maçã, levando à boca a maçã.

Ele a abraçou, enquanto dançava, e dançou, olhando tão dentro dela, que enxergava todos os pontos da sua alma. Ela sabia e isso a deixava ainda mais excitada, dormente, cega, sentia o erro de se deixar naquela mão esquerda, sentia o erro e tanto mais adorava e tanto mais se mexia, e tanto mais se perdia naquela... sombra de olhos inesquecíveis, que a conduzia a um outro andar. E as serpentes se uniam à dança, encaixadas no casal, enroladas ao casal, um nó, um chicote, um laço...

“Ela tem os olhos mais verdes que o mais verde”, pensou.

E, quando foi entregue à ela, o lugar não existia mais. Era apenas a fumaça e aquela mulher, de cabelos até a cintura, os olhos mais verdes que já vira e um cheiro que a desconcertou no primeiro segundo.

Empurrou à ela a bandeja. Que cheirou todo o pó brilhante de uma só vez.

A não-melodia se tornou música. Música, e aquela mulher que lhe oferecia o infinito e que ela aceitava, embalando-se na batida, corpos colados, um corpo, que era dois, mas não é mais, que é todo o mundo e não é nada, pernas entrelaçadas, como duas lésbicas se fodem, mas as roupas, que não estavam lá, eram duas-uma, despidas, e os olhos mais verdes que todos os verdes, engolindo a fumaça, toda a fumaça do bar, numa única inspiração.

Ela gozou. E os olhos verdes engoliram seu orgasmo. E tudo mais que era. Que viria a ser. Engoliu sua essência. Numa dança. Num instante.

Ela tentou recuar, dizer não, mas não tinha voz, não tinha palavras, não tinha mais quem era, mais nada. Restou um gemido no ar. Perdido no espaço vazio, que não tinha mais fumaça. Era um oco. Não havia existência. Nunca houve nada ali, além de lembranças de ninguém. Um vir a ser que não foi. Um nada.

Na sua inconsciência, percebeu-se nada, espalhado no vazio.

E uma solidão que lhe roía... nada.

Como sentir a solidão, não existindo? E entendeu-se solidão. Entendeu-se dor. E, naquele momento se lembrou quem era.

Abriu os olhos no corredor. E estava diante de outra porta...

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