sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Carta


Hoje eu resolvi tomar um café na rodoviária do Tietê. Aquela mesma pela qual você passou ao vir para cá me visitar em... abril? Maio? Não importa. Foi só um tempo destes tantos perdidos em ontens.
Sentei num banco com o café e acendi um cigarro. O movimento andava até calmo para um primeiro dia de feriado prolongado chuvoso.
Eu olhava as cores claras no chão, nas lâmpadas, das lojas. E, ao observar o ir e vir das pessoas fui sendo tomada de uma certa embriaguez...
Rostos diferentes em todos os lugares.
Uma senhora de cabelos cinzas, acompanhada da neta (?) me fez abrir um sorriso. Ela usava um lenço colorido no pescoço e andava com certa dificuldade, mas continuava, recitando prováveis instruções para a provável neta.
Não foram as palavras, porque eu não as ouvia. Mas uma certa suavidade naquele rosto ido: um conforto em meio à multidão.
Ao mesmo tempo, pensei nos outros tantos rostos ao redor. Lembrei-me que, há pouco, havia apertado a bolsa contra o corpo ao notar um cara meio desarrumado ali na frente.
E meu peito se fechou novamente. Franzi a testa que me despertou tanto as diferenças.
A música que ouvia também ajudava a produzir estes efeitos. Ela falava sobre um nada vazio do não-lugar onde eu estava.
Todos aqueles seres se movimentando tinham tanta vida. E... nenhuma da qual eu soubesse a respeito! O que elas significavam, por que iam, por que vinham, de onde, para onde.
Construía uma certa empatia com uns certos indivíduos e não outros. O que me dava esse direito de julgar com quem ser simpática e com quem não ser simpática? Por que gargalhar da roupa da mulher com o carrinho de bebê?
Minhas palavras cada vez mais anuviadas, minhas mãos ocupadas com cigarro e café, minhas unhas pintadas de vermelho. O CD pulou. O café acabou. As passagens estavam compradas. Era hora de ir embora.
Levantei-me tomada por uma tristeza que não era tristeza: uma preocupação, um cuidado. E era a você que eu gostaria de perguntar tudo isso.
Subi as escadas rolantes, peguei o ticket do metrô na mesma bolsa velha e surrada que permanecia na cadeira do bar naqueles ontens. Passei a catraca e esperei o trem.
De repente pensei na sua boca sussurrando, entre dentes, como as pessoas ao redor eram ridículas. Como se ocupavam com afinco de sua pequenez. Como seguiam suas vidas como se nada de mais isso significasse, como se nada fossem.
Lembrei de ontem à noite. Minha festa de aniversário.
Quantas das minhas palavras e ações não estavam impregnadas deste “seguir”?
Poucas.
A festa, a dança, os beijos em bocas, a cerveja, a tequila, o bar, os amigos, a fumaça, eram todos, todos, todos este “seguir”.
Talvez eu tenha te entendido nessa hora.
Talvez eu tenha enchido a minha vida destas coisas, destas distrações, destas nuvens, por medo.
Dentro do trem, um grupo de “malucos” tomava uma garrafa de cachaça e fazia muito barulho. As pessoas estavam incomodadas com aquela bagunça. Elas se entreolhavam, como se se entendessem. Os olhos como se fossem tão melhores que os “baderneiros”, como se sentissem pena, como se os compreendessem – eles não sabem o que fazem.
Eu poderia ter me impressionado mais, não fosse essa preocupação crescente no peito, que se alterava para a agonia.
Os símbolos da minha entrega ao seguir estavam cada vez mais claros. E eu senti pena de mim mesma por não conseguir viver sem eles.
Lembrei-me de anos atrás, quando esta agonia era minha companheira de vida. Como eu era marginal a estas pequenas conquistas da distração: não havia festa no final de semana; não havia ninguém com quem andar de mãos dadas num parque; não havia amigos a quem agradar; não havia porres semanais. Havia, eu.
Corria ao meu quarto e me trancava com a minha solidão. Chorava muito por não entender o que acontecia comigo.
Era esta mesma agonia que me visitava hoje. Como se eu a tivesse ido buscar na rodoviária, chegando de ônibus. De longe: uma velha amiga.
Mudamos de trem e sentamos num banco esperando a estação Belém. Ela não me disse uma palavra desde que havia chegado, mas não era preciso: eu já tentava compreender por quê aquela música me provocava tanta dor e aflição. E por quê aqueles rostos me contavam histórias vazias. E porquê eu continuava seguindo, sem saber onde ir de verdade, aqueles caminhos provisórios.
Eu nem sei porque é em você que penso ao escrever esta carta. Talvez eu apenas tente sentir sua falta de tempos em tempos. Talvez eu o visse o tempo todo acompanhado da minha agonia que eu tentei, de várias maneiras, esconder, fugir, fingir, que não estava sempre ali, ao meu lado, em mim.
Talvez eu apenas queira não me sentir só neste sentimento. Porque a sensação era de uma solidão doída, como se só eu neste mundo todo estivesse, naquela hora, refletindo sobre o que quer que isso fosse.
O trem chegou à estação, que estava um pouco mais escura do que o normal, algumas lâmpadas apagadas. Fui me dirigindo à saída, totalmente desmanchada das minhas ilusões cotidianas.
Estava chovendo e eu estava esvaziada. Restavam todos os males do mundo e apenas a esperança havia saído da caixa.
Por um minuto, pensei em telefonar ao meu pai para que viesse me apanhar de carro. Mas a chuva me estendia a mão, prometendo de volta uma realidade.
Dei três passos para fora do coberto. E senti o frio invadindo a minha dor. Como um banho quente quando se está congelando. Era preciso caminhar por vinte minutos de chuva para...
Fui andando por uma rua pequena e pouco iluminada, onde três moleques faziam qualquer coisa que eu não tive tempo de olhar para entender o que era, tão rápido que passei.
Senti medo. E vergonha por sentir medo daquelas pessoas.
E, neste momento percebi que havia duas vidas em mim: uma que não me dava o direito de sentir medo de outros seres tão vivos quanto eu, tão semelhantes, tão estranhamente fraternos; e outra que me dizia para caminhar mais rápido, pois eles eram claramente diferentes e poderiam ser trombadinhas e tentar me fazer algum mal.
Seria possível um meio-termo? Você organiza um meio-termo?
A verdade é que os três moleques poderiam ser infinitos três sentimentos diferentes no meu peito. Como escolher um, apenas? Se eu fosse pensar sobre todos os sentimentos antes de fazer as escolhas... eu congelaria aquela cena... e a reviveria de todas as formas possíveis.
Imagine isso ao ler uma frase. Como reviver o que se sente a cada frase? Ou, cada gota de chuva caindo no meu rosto...
Continuei caminhando, sem olhar para trás. Durante os minutos, fechei meus olhos diversas vezes, apenas ouvindo as músicas que continuavam a me tocar.
Comecei a esvaziar tantos pensamentos. Deixei a chuva me guiar até a entrada da rua-destino. Ao abrir o portão, já estavam lá de novo: todas as ilusões que me mantém seguindo. Todas as falsas convicções que fazem de mim quem eu sou.
Mari Brasil

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Paixões e Guarda-Chuvas


Não, não. Ele não anda de guarda-chuva na garoa fina. Porque se andasse, se tornaria a metáfora de toda uma vida que não me interessa.
Se tivesse o medo de se molhar... se tentasse sempre se proteger... se não vivesse cada gota...
Não. Não caberia em meus pensamentos.
Ele me pergunta se sou feita de açúcar. Não pela minha doçura, que finge ignorar. Mas, para zombar de quando me dissolvo pela sua atenção.
Ele abre o guarda-chuva – diz – apenas quando a tempestade aperta e de nada lhe serve, pois a água cai de baixo para cima. Banha de todos os lados.
É quando fecha os olhos e sorri, calmo. Lembra de uma música sobre chuva – qualquer uma. E a escuta em sua cabeça, confundindo-a com o barulho da água.
O guarda-chuva não o guarda, pois ele não precisa e muito menos deseja ser guardado.
Há apenas uma certa leveza em se apanhar aquele objeto e o projetar para o alto, como se pudesse resolver flutuar sozinho entre os pingos de chuva, dançando sua melodia molhada.
Mari Brasil