sábado, 29 de novembro de 2008

?


Gosto das mentiras bem contadas.
De arranjos de flores retaliadas dos jardins.
Gosto do cheiro das noites mal-dormidas,
das aranhas tecendo nas frestas da casa.

Gosto de correr para a madrugada,
e de copiar poemas bonitos em bilhetinhos

Gosto dessa alma de criança,
embirrando para não ter que engolir remédio amargo,
para tomar banho só amanhã cedo,
para continuar andando de pé no chão.

Gosto quando as corujas abrem as asas.
Quando olham a gente de canto,
girando o pescoço, que nem carrossel,
gosto de grama, de chão, de água correndo.

Gosto correr, gosto desenhar, gosto, gosto, gosto.
Mas, de vez em quando, deixo de gostar...

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Ando Para Trás


Areia fina, sob os passos, enquanto me afasto,
Sem discernir o caminho enquanto não desvio os olhos do mar,
Hipnotizada, visão fixa, no ritmo da água,
Que não mais alcança meus pés.

Areia que se concretiza, sólida, chão quente,
Pisando em espinhos sem tempo de removê-los,
Dor inflando, enquanto caminho de costas,
Nenhuma resposta, nada que desvie o olhar.

Cresce o relevo, o contorno do chão,
E o passo é subida, escalada pragmática,
Chutando as pedras com os calcanhares,
A praia ficando longe e pequena,
Avistada daquela altura do céu que me aguarda.

O peito ofegando, o par de pés que sangra,
Da caminhada para a direção contrária,
E nada me pára...

Olhar para trás, redirecionar o corpo,
Uma necessidade de andar, afinal,
Não mais de costas.

Mas os olhos desobedecem,
Desejam o infinito das ondas revoltas,
O desenho do tecido que traça o horizonte da existência,
Imensidão azul, não paro.

Não paro de olhar.
E se furasse os dois olhos,
O pescoço se manteria travado lá,
Na direção da lembrança.

O corpo rígido, músculos teimosos, saudosos,
Do que havia daquele lado...
Não há curiosidade que vença o vício,
Não há dor que atrapalhe o desejo

De se manter, para sempre, o outro lugar
O outro instante, de viver a saudade,
Se amontoar sobre a saudade, se desmanchar de saudade,
E, por fim, de se tornar a saudade...


E não viver mais nada, além da memória do mar.



Mari Brasil

O Estupro




Sempre admirei, de longe, a fantasia do estupro. Imaginei a completa ausência de poder, despido à força da sua convicção por algo ou alguém simplesmente irrepreensível, porque maior, mais forte, mais real...
E que ali não haveria chance de recusas, pois que não haveria chance de embate, debate, controvérsia. Ali, residiria total submissão.
E como seria a dor/prazer, essa troca louca de imagens e sensações, quando não se alcança a autonomia de fazer valer o simples som do “não”. Imaginava estas três letras que, quando justapostas, antecedem os contrários. Mas agora situadas em um universo em que nada significassem.
O dia em que este universo poderia se interpor a meus passos por, talvez, um engano inocente, de um suposto desejo inconsciente que nunca existiu:
No leito, do quarto escuro e fechado, nua em pelo, só a coleira entrelaçada ao pescoço e um homem descomunal, me acariciando o sexo.
Um fiozinho de luz da janela pequena, pouco iluminando os dois olhos azuis que, eventualmente, olhavam a minha cara e sorriam. Sorriam os olhos e esse gesto me aterrorizava, porque neles residia um quê de maldade, de impudicícia, imprudência...
No entanto, fechei os meus olhos e entreguei: imóvel e doce, impotente, endereçada ao deleite do sadismo do outro.
Ele, um gigante daquelas curtas horas, e eu, um quase nada, à beira, a esmo, sem lugar que não fosse o dele, sem ação que não fosse dele, à inteira disposição.
Ao adotar o papel, o papel da minha fantasia subordinada, da decisão alheia, o sangue fluiu rápido por todo meu corpo, a respiração ofegou, fiquei quente demais: estava pronta. Era certo que estava pronta!
E quando aquelas mãos iniciaram o caminho de percorrer todo meu corpo, como se pertencesse a ele, como seu brinquedo, como se fosse plástico e que não se pudesse sentir nada...
eu sentia!
Doía! Cada aperto ao redor dos pulsos, cada golpe desferido, cada pedaço quase arrancado, mordido, um estraçalhar de mim mesma que não cabia mais nesse lugar imaginado, de sonho, de fantasia:
era a minha carne! Não era mais mentira!
Daí o terror subiu das dores para a cabeça, o desespero entrou em domínio e não havia mais calma, submissão, contentamento: não estava pronta! Era “não”! Era “não”!
- Por favor, me ouça! – gritava em mim. Mas o grito não saía: era “não”! – Por favor, me ouça!
Algo calou a hora de correr: que agora me adentrava com toda força, rasgando na entrada um pedaço de alma junto.
Deitada de costas, os braços não tinham chance contra as mãos agarradas aos pulsos. As costas não tinham chance contra o peito que as empurravam para baixo. As pernas nem sequer se moviam, do peso dos joelhos empurrando-as para os lados, escancarando-as mais que podiam, quase um desmembramento – de corpo, de sonho.
E a cena da minha fantasia de repente não era aquela! E controle, não havia nenhum! E a dor que deveria me encher de prazer, era... só dor!
Era só dor... a cada investida, de mãos, de pau, de boca, dentes e tanta força... e... tão pequena eu estava ali, quase inexistente de mim, olhando os contornos do travesseiro à frente, tentando esquecer o medo, pensar como sair, como sair daquela cena.
E quando ele me virou de frente, me enfiou o pau até tão fundo (tão fundo!), olhando os meus olhos quase fechados...
e, aí sim, aí me reduziu ao nada, ao fundo do desprezo:
Cuspiu na minha cara...

Cuspiu

Na

Minha

Cara

Fechei os olhos de vez...
E, no escuro, a saliva do rosto ficou salgada, misturada às tantas lágrimas que eu não continha mais, que eram o meu “não” conseguindo sair, vindo à tona: que ele enxergasse, por favor! Que ele entendesse, sem som, as três letras!
E depois de alguns minutos, ele viu...
Ficou imóvel um instante, os olhos franzidos, o rosto franzido.
Mudou para uma expressão confusa: levantou-se, me tomou nos braços, me aninhou.
E enquanto eu ainda não podia conter o choro, perguntava:
- Por que não disse nada? Por que não me disse nada?!! Como não disse nada????!!!
Estava com medo! Estava com medo! - tentei dizer,
mas a voz não saía...




Mari Brasil