sexta-feira, 25 de julho de 2008


Já havia vazado mais de litro quando chegamos lá. O desfecho escuro da noite já se ia, o morno da carne também, contornando o ar do quarto, suave, que nem mar em calmaria.
Os olhos ainda escancarados, a boca dura, quase que cravada no travesseiro.
Pensava no tempo, enquanto acariciava os cabelos secos que desciam pela nuca.
Encontrei, nas costas nuas, razões para mantê-las assim nuas por mais algumas horas. Eram pedaços de corpo em que nunca havia reparado, apesar de tanta maldade, de tanta malícia com que havia afagado estas costas, unhas cravadas até o gozo ébrio e úmido.
Uma curva. Uma marca. Outra marca.
Sempre estiveram ali. Enquanto eu... nunca estive de verdade. Nunca fui registro deste corpo, parte dele.
E, ainda assim, ao me debruçar naquela nova curva, senti meu cheiro se espalhando por sobre o cheiro dela, dele, da cama, do quarto, mergulhada numa sensação de cobrir aquela que havia sido outra vida, outro plano.
Ela chorava, em pé, horrorizada da cena de morte, quando lhe disse:
- Você já não esteve perdida? Digo, você, alguma vez, teve um plano?
Ela não entendeu a pergunta.
Não, ela entendeu a pergunta. Só não conseguia entender o que isso tinha a ver com a situação. E continuou chorosa, continuou descontrolada, enquanto eu continuava procurando novos contornos. Insisti:
- Você também é curiosa sobre as pessoas que têm um plano?
- Por que você está fazendo estas perguntas idiotas? Ligue para alguém! Chame alguém! – berrou, entre soluços.
Mas, as costas nuas me convidavam a contemplá-las, em toda sua rigidez. E eu não me movi.
O sol passou a despontar na manhã, um fiozinho alumiando a parede, perto da cômoda. Em cima dela, uma garrafa de vinho, as horas passando e os planos vazando, escorregadios, pela janela.



Mari Brasil



sexta-feira, 11 de julho de 2008

Carta para Maria


Ai Maria, tenho que te confessar. Hoje tudo andava caminhando nos trilhos.
Após tanta tristeza, cansaço...
Me vieram cinco noites mal-dormidas com dois amantes diferentes, turbilhão de fantasia e gozo – a prática desnuda da falta de pudor, olhar que divaga para assumir qualquer coisa, qualquer uma mesmo que pareça mais plausível.
Hoje, e só hoje, eu não bebi.
E me cobriu uma manta clara, como que afago da lua, da noite colorida de praia, de frio... um centro esquisito que me colocou de pé.
Ia tranqüila pela rua, quando, não sei de onde, deu um estalo e decidi ler as cartas que ele mantinha guardadas.
Entre as cartas, tantas desimportantes, havia novas:
elas remetiam ao amor antigo e saboroso que, pelo que me pareceu, não acabou não, como ele insistia em me afirmar.
Ah, Maria... caiu, de novo, pelo chão: doçura de tantas paixões que passaram em minhas mãos, e se enroscaram em meu pescoço, e se confundiram com o que eu sentia pela cena, por mim. Todas, todas de volta, sendo sentidas, juntas, derramadas (por estes dias, derramei três copos cheios do que ia beber - não entendia o que eles significavam).
E eu, Maria, o que fazer?
invejei...
Estou envergonhada agora.
E, ao invejar, me dei conta de tanta inveja dos outros braços que agora os abraçavam, que agora os tocavam, que os colocam a dormir enlaçados neste mesmo instante em que lhe escrevo.
Essa inveja desatou corroendo, um algo mais de mórbido, a própria sobriedade com que me deparava: eu não compreendia, desta forma, como poderiam passar pelos meus braços e não mais os desejar. Desejar outros braços! – como?
E me lembrei da singularidade de cada mulher, da minha, das deles, e de como não se pode esperar tornar-se mundo inteiro, sendo porção tão infinitamente pequena...
Há de se ter outras pequenas porções. Há de se ter...
Havia, deste modo, tantas e mais tantas justificativas para que escolhessem outros braços. As razões mais sem razões e as coisas mais óbvias em que se possam depositar os sonhos...
Mesmo assim, continuei a invejar...
Ali dentro, tanto desejo de outros, tanto suor escorrido, pensamentos dedicados a manter, na memória, cada imagem que continuasse a erguer passados dos quais nada restava.
E as imagens, ao invés de trazerem um fulgor leve de lembrança boa, amenizarem os ânimos, quebrarem correntes, mais me prendiam naquelas cenas, mais me agonizavam a falta de sua concretude, mais amordaçavam os gritos que ia soltando pelo caminho.
Sentei derrotada na escrivaninha... vasculhei livros, reli poemas, tratados. E ainda não compreendi como controlar este hábito de desejar aquilo que... me escapa.
O que me escapa, Maria!

quarta-feira, 9 de julho de 2008

2 pés em cada 1


Velho, tou usando as tuas meias...
Aquelas mesmas que você desprezou porque a faxineira manchou na máquina de lavar.
Estão aquecendo meus pés.
Ainda que você não fale mais comigo, tuas meias aquecem meus pés.
Parece até que essa barba branca foi te levando para o lado de lá do rio.
Parece até que andas esquecendo de te distrair.

Olha velho, tenho umas coisas a dizer:
tu que me ensinastes a não olhar apenas por um buraco de fechadura...
Andas falando alto demais porra!
Anda engolindo a própria merda...
Que é isso velho?

Agora que me encontro nessa ladainha de faz-de-conta,
lambança de cu de todo mundo...
agora que eu vejo o que tu dizias...
tu viras as costas e me largas sozinha aqui? Agora que eu entendi?

Ainda caibo dentro dos teus sapatos! Os dois pés em cada um!
Nunca dei um nó em tua gravata velho!
A calva anda afetando teu olho pro mundo?
É insegurança isso que eu ando sentindo?
É medo mesmo?

Não...
No fundo eu sabia, que ias acabar te afeiçoando à solidão
de um pensar tão dentro, inóspito, dono do mundo
que não iria mais caber em ti, em mim.

É velho,
agarrastes a idéia do partir,
senhor de tuas convicções sobre tudo.
Sobretudo, na imaginação parca, na visão turva,
na cegueira mesmo,
do espelho do teu velho.

Me aguarda que sigo teus passos:
dois pés dentro de cada sapato.
E o sorriso deslumbrado para o mundo, que me ensinastes...
por enquanto...

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Atenta pro alívio que atrapalha
no coração de cada resgate, aventura de cada mudo:
“Sinto a palavra ecoando no livro do instante”.

“Calma que a parada demora a acontecer”, dizia ele.
“Calma, que se-pare quando não mais se demorar”.

Eu merecia não mais do que um olhar de comiseração,
um jovem aceno de canto de olho, um alisar os cabelos...
Corria suave o peito aberto às lembranças:
...se eu começasse, acabaria adotando uma puta!

Abri o riso: decretei minhas férias.
Ladeira acima, como se nada pudesse despontar meu adeus e
fiquei,
sentada,

lambi as gotas de chuva da cara,
como se fosse porra, jorrando do céu...
Sentei no chão, beijo no asfalto e qualquer coisa.

Nada sozinho no lugar, nem mesmo ele, nem mesmo eu.
E aquele cheiro,
que emite a solidão pra fora.
Magia mesmo, das fortes.

Ele apertou a barriga na minha, como não me deixasse ir. Nunca!
Deu um terror e uma paixão de vez. Na hora.

Corri pra muito longe daquele altar,
que não há divindade que alivie mais,

do que eu.