Hoje a madrugada está relativamente quente. Visto uma camisola em meu apartamento, no centro, não estou nua em pelo. Mas não sei mais o que me tornei, identidade mesmo. Sei coisinhas. Sei pouco de quem era. Sei do que sinto falta. Mas do que ser, mesmo, ali, na hora, sei nada. Sei que queria voltar e ter uma outra vida, mas esta também não era o que queria, quando era o que era. Sei que faz tempo que não escrevo e, agora mesmo, sei que perdi o jeito. Nem uma rima, desde o início de toda esta sapiência sobre nada de si mesmo. Parece que eu perdi o movimento, que antes, era um roçar de asas, um palpitar imenso e eu já estava lá, e agora eu sento neste computador e parece que tudo se move ao meu redor e eu não ando, não me mexo. Sento num sofá que me engole e não ouço e não vejo e não suo mais. É uma parada total, um pé num freio imaginário, que nem título eu consigo dar. Estou agonizando, mas se você olha, parece que está tudo tão bem, que a vida anda perfeita e eu não consigo me debater de me afogar em todo esse marasmo de ser, este inferno que todos desejam de normalidade.
O telefone tocou e quando fui ver, derrubei um copo inteiro de água na mesa que não tem verniz. “Vamos começar a tocar às três”, ele diz, e eu rio sozinha do copo que eu derrubei na mesa sem verniz, que ele quebrou por 2 segundos, o imenso tédio em que estou boiando. Ainda que quando eu trabalho, esse vazio fica preenchido de todas aquelas coisas sem sentido e eu finjo que está tudo bem e a minha boca concorda sorrindo, está tudo bem. Mas eu estou de férias agora. E eu leio essas idiotas, essas malditas que roubaram minha velhice, a Hilda, a Clarice e a Lygia, mas principalmente a Hilda, e eu não sento mais aqui pra perverter em palavras essa cretinice que me aporrinha cotidianamente. O que eu sou, isso já tá perdido. Terapia é o escambau, que minha terapeuta conheceu um português e me avisou na sexta que na terça ia pra Europa e “vamos fazer sessões pelo skype” e eu concordei fingindo, que ódio, que eu perdi aquela manhã, hora do almoço e início de tarde em que a gente se alimenta de si e se saboreia e, sentindo o gosto, lembra, um pouquinho ao menos do que é, do que sente e do que queria pra si naquelas horinhas bobas.
Eu ouço o relógio bater os segundos na sala, mas o ponteiro caiu e eu não sei se ele está mentindo. Ele deixou um cd todo branco na minha cômoda, mas eu fujo desta armadilha, que sei que isso é controle e eu não posso mais, não dá mais pra ser tão controlada, tão dócil - eu sou a minha cachorra e ela é um golden retriever. Se ouço direita, vou à direita. Se é esquerda, esquerda, então. Não existe mais uma sexta-feira de perda e dor. Eu quase posso ouvir uma gaita chorando, na memória de chuva de sextas – mas hoje já é sábado e ontem eu dormi cedo.
Eu ouço por aí que odeio demais, que sou do contra, que falo demais, mas, também, ninguém quer saber a verdade, e eu tenho que disfarçar dizendo algo idiota, que possa fazer todos focarem na contradição. Que eu sou toda, toda, contradição. E eu não quero mais culpa, eu nem aceito mais, eu só engulo. Eu não vou e venho quando eu quero, eu não estou preenchida, então eu como demais, eu bebo demais, eu fumo demais, eu cheiro demais, eu obedeço demais, tudo, todos. E, quando não isso, eu dou outro jeito: faço relatórios demais.
Ontem eu andei na praia e a areia assou meus pés. E tudo que eu desejava era correr de novo, que nessa hora era só eu e música e toda a praia. É pra isso que praia existe, pra gente atropelar tanta areia e chegar do outro lado e voltar e voltar de novo e de novo, até as pernas bambearem e você poder dizer que agora sim, posso ir pra casa. Eu sinto falta de ter fome e de ter desejo que são iguais, na verdade. Parece que não tem mais espaço pra você ser alguém de filme e isso é crescer e ser maduro, e eu sempre quis ser alguém de filme, uma coisa fora do comum, esse comum me corrói, é ácido me destruindo, parece que de dentro pra fora, que vai me derretendo e derretendo, eu estou é isso: derretendo. Se eu fosse me filmar ia ser uns bifes e um ácido derretendo.
E agora que estou sentindo algo, são os mosquitos me tirando de janta, eu virei gado, eu sou um rango, mas não é só meu corpo, minha cabeça também, estão devorando tudo que havia de lindo aqui dentro e o pior é que sou eu mesma, comendo de colher, como se eu fosse me devorando o pé, depois as pernas, depois minha barriga, meu peito, até sumir e ser só uma boca. Que não tem mais o que dizer.
Nenhum comentário:
Postar um comentário