quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Contando Horas

Se de memória, nada restasse,
Nada, entrecortando o ontem e o agora,
Nenhuma saudade que fosse, nenhum ponto perdido,
(não se dá à conta o perdido, quando não há memória)
nem o antes do ontem...

E perdidas também, todas as palavras.
Toda essa conversa agradável de almoço. Todas, promessas,
cumpridas, quebradas, imaginadas e,
a partir...
para um vazio vago do qual nos desfazemos ao dormir a noite. Ou o dia.

Livres que estamos, se, do lembrar, esquecemos.
Nada mais se deve, nada mais se paga.
Tudo enrugado num horizonte de...
folha em branco.

Um piscar os olhos que não mais se demarca,
mas também não dói.
Uma distância vazia entre dois pares de pernas que não mais se percebem...
conhecer.

Tudo é novo, tudo é fita.
Um recomeço de cada estrofe,
um descompasso a cada novo acorde.

(Como haver canção, então?
Não... não...)

Como contar as horas? De grão em grão?
A hora sempre será aquela prima,
onde o tempo começa. Onde começa você.

E nada se termina...


Mari Brasil

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Ela e a Caixa


Ela era um misto de força e delicadeza, misturadas à raiva e a um pulsar que nada alcança. Corria pelos fogos da vida salivando e à espreita. Cansava fácil e temia a tudo. Mas era insistente: não desistia. Parava por uns tempos, mas voltava, disposta a percorrer todas as distâncias do universo.
Eu a observava de longe, encantado com todos os traços. Ensaiava tocá-la, ensaiava tê-la, guardá-la, menina em meu regaço. Em uma caixinha só minha, dentro do criado-mudo dos meus devaneios.
Mas, como caça, todas as vezes que estendia meus dedos para agarrá-la, fugia esguia e hábil, por entre todas as minhas soluções. Eu não tinha essa moça em minhas equações. Pois ela, não tinha a ninguém.
Num certo momento, devido à minha insistência, observei-a acostumando-se à minha presença, não me planejando mais seu inimigo. Trouxe-lhe agrados de todos os tipos, os quais ela aceitava, ainda pensativa.
Tornou-se, enfim, confiada, o que me abriu caminho para que me preparasse a enjaulá-la. Porém, enquanto a cercava, com incontáveis redes e armas, coloquei-me triste, vendo-a tornar-se pequeno bicho acuado num canto de mata.
As mãos, de repente, amarradas. Nenhum sorriso nos lábios, olhos baixos. Ela não sabia como reagir a uma força tão imprudente, tão mais forte que ela, tão irresponsável, tão dominadora, que se impunha, desconsiderando os seus desejos. Ela se sentiu pequena e traída. Desejava sair e não podia! Não queria ser alvo daquela caçada! E não sabia como escapar dela...
Seus olhos se fechavam em desespero.
Num lampejo, entendi o que amava naquele pequeno animalzinho: era um ímpeto de ser livre e contemplado e contemplar. Era uma rebeldia de rasgar com os dentes todos os papéis imaginários que trazem as leis do mundo. Era uma sede que o próprio mar não poderia conter.
Era... eu.
Um eu que fui e que não fui, um eu do porvir. Um eu que sou também, que fala baixinho ao pé do ouvido, mas ao qual finjo não acreditar...
Num sopro, esse eu me disse: “deixa-a ir! Existem outros modos de viver o mundo, sem que precise colocá-lo nessa sua caixa”!
No olhar de dor, compreendi que guardá-la na minha caixa não traria de volta a oportunidade de mudar todas as minhas escolhas. Colocá-la na caixa não me tornaria o que desejo ser. Colocá-la na caixa não faria da caixa um mundo paralelo para o qual poderia escapar de vez em quando. Colocá-la na caixa só faria matar tudo que de mágico e grandioso ali reinou um dia. Esse bicho acuado, já não era mais nada daquilo que desejei.
“Deixa-a ir... está sofrendo...